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Mulheres na Literatura: Clarice Lispector e Wislawa Szymborska (contém spoilers)

Clarice Lispector e Wislawa Szymborska abordaram a religião na poesia "A Mulher de Lot" e no conto "O Crime do Professor de Matemática".

Clarice Lispector e Wislawa Szymborska

Clarice Lispector foi uma escritora e jornalista ucraniana de origem judaica russa, naturalizada brasileira e radicada no Brasil. Autora de romances, contos e ensaios, é considerada uma das escritoras brasileiras mais importantes do século XX. Wislawa Szymborska foi uma escritora polonesa ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura em 1996 "pela poesia que com precisão irônica permite que o contexto histórico e biológico venha à luz em fragmentos da realidade humana". As duas autoras abordaram a religião em alguns de seus textos.

Wislawa Szymborska apresenta uma percepção religiosa na poesia A Mulher de Lot, publicada na coletânea poética Wislawa Szymborska [poemas], fazendo referência direta ao episódio bíblico de Gênesis 19: 1-26, quando a mulher de Ló virou estátua de sal ao olhar para trás na destruição de Sodoma e Gomorra. Na poesia, são apresentadas possíveis justificativas dela ter olhado para trás, trazendo uma nova leitura sobre essa personagem, que costuma ser mostrada como um exemplo de desobediência. Uma perspectiva diferente sobre uma personagem que era apenas conhecida como A Mulher de Ló, podemos chamar sua poesia de uma releitura com um olhar feminino.


Observe:


A Mulher de Lot


Dizem que olhei para trás curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração - amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela a desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afastada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado de ideia
Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus -simplesmente tudo o que vivia
serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento me bateu,
despenteou o meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão que me viam dos muros de Sodoma
e caíam na risada, uma vez, outra vez
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.


(Tradução de Regina Przybycien)


Assim como Wislawa, Clarice também aborda a religião em sua literatura. No conto O Crime do Professor de Matemática, publicado na coletânea de contos Laços de Família, um protagonista masculino quer enterrar um cão morto, como forma de expiar os seus pecados.

"Então o homem se levantou, sacudiu a terra das mãos, e não olhou nenhuma vez mais a cova. Pensou com certo gosto: acho que fiz tudo. Deu um suspiro fundo, e um sorriso inocente de libertação. Sim, fizera tudo. Seu crime fora punido e ele estava livre." (LISPECTOR, p. 121).

O conto dá um indicativo que o tempo e o espaço da narrativa se passam durante a saída dele de uma missa:

"(...) Os católicos entravam devagar e miúdos na igreja, e ele procurava ouvir as vozes esparsas das crianças espalhas na praça" (LISPECTOR, p. 118).

Clarice se utiliza de metáforas religiosas.

"O cachorro desconhecido estava à luz" (LISPECTOR, p. 119). Estar a luz para os cristãos significa estar mais próximo de Deus. O animal do conto estava morto, e na doutrina religiosa, ele estaria no paraíso.

Em outro trecho do conto:

"Enquanto eu te fazia à minha imagem, tu me fazia à tua" (...) (LISPECTOR, p. 121). Esse segundo trecho lembra Gênesis 1: 26-28, quando Deus criou o homem e o fez conforme sua imagem e sua semelhança.

Assim como Wislawa Szymborska, Clarice também aborda 'punição' divina em sua narrativa:

"Há tantas formas de ser culpado e de perder-se para sempre e de se trair de não enfrentar. Eu escolhi a de ferir um cão", pensou o homem. "Porque eu sabia que esse seria um crime e que ninguém vai para o Inferno por abandonar um cão que confiou num homem. Porque eu sabia que esse crime não era punível". (LISPECTOR, p. 124).


Fontes:


BÍBLIA, A. T. Gênesis 1:26- 28.
BÍBLIA, A. T. Gênesis 19:1- 26.
LISPECTOR, Clarice. O Crime do Professor de Matemática. In.: Laços de Família.
SZYMBORSKA, Wisława. A Mulher de Lot. In.: Wisława Szymborska [poemas].

Sobre o Autor:
RibamarBacharel em Letras pela UECE- Universidade Estadual do Ceará e pós-graduando em Comunicação e Linguagens pelo Centro Universitário UniFanor Wyden. Gosta de escrever sobre livros, filmes, séries, minisséries e telenovelas.



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